Quando Trigidia Jiménez começou a cultivar a cañahua, esta planta só era utilizada para consumo próprio na Bolívia. Hoje é produzida por mais de 1.500 famílias que a comercializam.
São José, 25 de abril de 2022 (IICA). – A engenheira agrônoma boliviana Trigidia Jiménez, que combinou saberes científicos e ancestrais na Bolívia para potencializar o cultivo da cañahua, foi reconhecida como uma das “Líderes da Ruralidade” das Américas pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA).
Jiménez é uma quéchua que se propôs resgatar um grão de alto valor nutritivo, cujo cultivo foi desenvolvido pelos povos indígenas em tempos pré-hispânicos, mas posteriormente foi trocado por outros alimentos introduzidos na Bolívia. Quando ela começou a cultivar a cañahua, esta planta só era utilizada para consumo próprio. Hoje é produzida por mais de 1.500 famílias que a comercializam.
O prêmio, denominado “Alma da Ruralidade”, é parte de uma iniciativa do organismo especializado em desenvolvimento agropecuário e rural para reconhecer homens e mulheres que deixam rastro e fazem a diferença nos campos do continente americano, região fundamental para a segurança alimentar e nutricional e a sustentabilidade ambiental do planeta.
Trigidia foi criada no campo e herdou do pai a paixão pela agricultura. Desafiando os estereótipos de gênero, cursou universidade e trabalhou longo tempo na cidade, mas aos 45 anos, casada e mãe de quatro filhos, decidiu voltar ao campo para se reencontrar com as suas raízes.
É uma das promotoras da “Rede Nacional de Saberes e Conhecimentos em Cañahua”, organização que busca dar visibilidade a esse cultivo por sua importância para a segurança alimentar e suas qualidades resilientes à mudança do clima.
A Rede tem o apoio do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) com uma ampla participação de atores.
O Prêmio Líderes da Ruralidade concedido pelo IICA é um reconhecimento aos que cumprem um duplo papel insubstituível: ser avalistas da segurança alimentar e nutricional e, ao mesmo tempo, guardiões da biodiversidade do planeta por meio da produção em qualquer circunstância.
O reconhecimento, além disso, tem a função de incentivar exemplos positivos para as zonas rurais da região.
Trigidia Jiménez, a mulher que aprendeu a ser resiliente com a agricultura
Trigidia Jiménez nasceu em uma família boliviana de agricultores que foi obrigada a abandonar o campo quando ela era ainda menina devido ao surgimento de obstáculos para a venda do trigo que produzia.
Foi assim que ela partiu da comunidade de Chaupi Molino, no departamento de Chuquisaca, e que o pai começou a trabalhar como mineiro na mina São José, em Oruro. Mas ele nunca abandonou o amor pela natureza e pela agricultura, e todos os fins de semana, ao pé do morro São José, ensinava a filha pequena a cultivar batata e a reconhecer e valorizar as propriedades nutritivas e medicinais das plantas nativas.
Jiménez herdou, assim, a paixão pelo campo. Aos 18 anos, ela se atreveu a partir para uma aventura que parecia proibida à maioria das mulheres na Bolívia: entrar na universidade e estudar engenharia agronômica.
Este foi o começo de um longo caminho que a levou a ser considerada hoje a maior promotora e produtora no país de cañahua, um grão andino de extraordinárias propriedades nutritivas que é cultivado de maneira orgânica segundo o saber ancestral dos povos indígenas.
Muitos não conhecem a cañahua, porque, apesar da tradição milenar do seu cultivgo, foi relegada ao esquecimento na era colonial. De fato, quando Trigidia começou, a cañahua era plantada na Bolívia unicamente para consumo próprio. Depois de dez anos, gerou-se uma dinâmica econômica virtuosa, graças à qual hoje mais de 1.500 famílias a produzem e comercializam.
“Sou uma mulher quéchua boliviana, orgulhosa das suas raízes, que conseguiu descobrir suas capacidades ao romper os estereótipos machistas. Na área rural da Bolívia, muitas vezes se acha que uma mulher não pode liderar uma empresa ou um empreendimento, mas eu demonstrei que se pode ser uma mulher feliz e realizada”, diz Trigidia, criadora da Fazenda Samiri, no município andino de Toledo, onde começou cultivando apenas um hectare e hoje trabalha com mais de 80.
“Quero que a cañahua ocupe um lugar na cesta familiar dos bolivianos, porque é um superalimento, mas muitos não sabem disso”, se entusiasma ela, que em 2017 foi uma das promotoras da “Rede Nacional de Saberes e Conhecimentos em Cañahua”.
Esta organização, que tem o apoio do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) e uma ampla participação de atores, busca dar visibilidade à cañahua por sua importância para a segurança alimentar e suas qualidades resilientes à mudança do clima.
A volta ao campo
Trigidia conheceu seu marido, também filho de agricultores, na universidade, na cidade de Oruro. Os dois se formaram engenheiros agrônomos, casaram-se, tiveram quatro filhos e atuaram em diversos setores no serviço público e em consultorias.
Nas férias, iam para a zona rural colaborar com os sogros de Trigidia nas tarefas agrícolas, e ela começou a se sentir cada vez melhor. “Me dei conta”, explica, “que queria estar em contato com a terra. Não queria continuar trabalhando em escritório. Comecei a me conectar com a natureza e a me perguntar se era feliz na cidade”.
Foi então que o sogro falou à Trigidia sobre o cultivo e o valor nutritivo da cañahua, grão de que ele tinha grande conhecimento adquirido dos ancestrais.
Com toda a família, Trigidia decidiu então mudar-se para o campo, onde começou a trabalhosa construção da Fazenda Samiri. Ao retornar à ruralidade aos 45 anos, Trigidia voltou a vestir as polleras (saias e vestidos caracterizados por seus adornos) que são o símbolo da mulher camponesa na Bolívia, e teve a satisfação de se reencontrar com as suas raízes.
“Nós nos propusemos ser os primeiros produtores de cañahua para comercialização na Bolívia Fiz um diagnóstico de todas a pontos fortes e fracos do cultivo. Estabelecemos metas de dez anos, e nos primeiros cinco anos só fizemos investir e construir a fazenda passo a passo”, conta.
Trigidia lembra que a primeira coisa que ficou claro foi que, para além do seu saber técnico de engenheira agrônoma, era imprescindível resgatar o conhecimento ancestral e respeitar o meio ambiente.
“A cañahua tinha sido esquecida por muitos fatores. Antes da conquista, era um dos principais alimentos, mas em seguida foi substituída por outros introduzidos no nosso continente e passou a ser cultivada às escondidas. Até as décadas de 1960 ou 1970, não tinha valor comercial. Quando demos a partida, os camponeses só cultivavam cañahua para consumo próprio, mas eu disse ao meu sogro que iríamos conseguir exportar”.
O trabalho na Fazenda Samiri conseguiu identificar quatro variedades, duas das quais já foram registrados e estão liberadas para comercialização. Também conseguiu melhorar a produtividade, pois antes se obtinham 7-8 quintais por hectare e hoje, graças à combinação de conhecimentos ancestrais e científicos, chega-se a 22. A cañahua é comercializada em apresentações de pito (farinha com açúcar e especiarias), farinha, pipoca (palomitas), barras energéticas, api (bebida quente), sopas instantâneas, biscoitos e cup cakes.
“A Fazenda Samiri é a soma de muitas organizações que nos têm apoiado. Precisamos superar muitos obstáculos. Entendemos que tínhamos de desenvolver produtos de acordo com o gosto do consumidor final. Também aprendemos que deveríamos fazê-lo com o uso sustentável dos solos, e por isso produzimos três anos e depois o solo descansa. Além disso, em Samiri é proibido matar qualquer animal, porque entendemos que todos os seres viventes têm a sua função na natureza”, diz Trigidia.
“Fizemos um acompanhamento agronômico do cultivo”, acrescenta, “e descobrimos que tem muita resiliência climática, pois há 20 anos chovia mais do que hoje. Eu o considero um cultivo inteligente, porque é resistente às geadas e conseguiu se adaptar à mudança do clima”.
Quando lhe perguntam se se considera uma empresária, Trigidia, que na pandemia sofreu o duríssimo golpe da morte do marido pela Covid-19, responde que é uma mulher sonhadora.
“Renunciei a um trabalho que não me satisfazia e me arrisquei a começar de zero, o que não foi fácil porque já tínhamos quatro filhos. Na Bolívia, especialmente na área rural, ainda há muito machismo. Uma mulher deve cozinhar, lavar e ser boa filha. Eu não confiava em mim mesma, precisava do aval do meu marido para tudo. Temia que o meu casamento não funcionaria se eu descuidasse o lar”, relembra.
“A cañahua”, conclui, “me transformou em uma mulher forte, guerreira. Ver esse cultivo tão pequenino com capacidade de se sobrepor a fatores climáticos tão adversos, que nunca se rende e segue em frente, me ensinou a me amar a mim mesma e a entender que eu era capaz de fazer na vida o que eu me propusesse fazer”.
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